Quinn Slobodian: A Crítica ao Neoliberalismo Não Se Encontra na Esquerda

Quinn Slobodian é professor de História no Wellesley College (EUA), especialista em história alemã, em movimentos sociais, especialmente nos anos 1960, e na história intelectual do neoliberalismo. É autor de “Foreign Front: Third World Politics in Sixties West Germany” (2012) e, mais recentemente, de “Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism” (2018).
Sendo preciso acerca do que entendemos por neoliberalismo – e a que tipo de neoliberalismo nos estamos a referir – é um modo de preservar o termo para usos políticos e acadêmicos. Não deixamos de usar termos como “socialismo” ou “liberalismo” apesar de serem frequentemente definidos de formas tão marcadamente distintas. Isto significa simplesmente que temos de ser claros acerca das nossas categorias.A ideia de que o capitalismo precisa de ser defendido da democracia é um dos principais argumentos em muitos círculos econômicos e políticos. Quão rigoroso é o argumento hoje, dados os múltiplos sinais de desglobalização e crescente nacionalismo econômico?
Muitos acadêmicos, antes e depois de mim, têm escrito acerca da emergência de instituições no último meio século que isolam os decisores políticos de pressões democráticas para garantir o que é visto como sendo políticas econômicas necessárias mas frequentemente dolorosas. Exemplos disto incluem bancos centrais, autoridades portuárias, e tribunais de arbitragem de disputas entre investidores e o Estado.
A Europa testemunhou esta dinâmica em ação durante a crise da Eurozona quando a chamada troika da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional impôs políticas a países como a Grécia sem grande atenção ao sentimento democrático local.
A minha preocupação no “Globalists” foi mostrar que essas instituições construídas para proteger – ou, como lhes chamo, revestir – o fluxo de bens e capitais através das fronteiras sempre tiveram um calcanhar de Aquiles. Faltava-lhes precisamente o ingrediente que tem ajudado as instituições a sobreviver durante décadas na era moderna: legitimidade democrática.
Podemos ver um sintoma precoce desta crise de legitimação nos protestos em massa em Seattle que boicotaram o encontro ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) apenas quatro anos após esta ter sido criada. Podemos ainda vê-lo na rejeição da Constituição Europeia nos referendos na França e nos Países Baixos em 2005. Ou ainda no crescente ressentimento relativo à União Europeia durante a crise da Eurozona. E, claro, no voto pelo Brexit e na eleição de Trump em 2016.
Como olha para essa sequência de processos?
Aquilo a que estamos a assistir agora é uma ampla rejeição do objetivo de “despolitização” das relações econômicas, como muitos neoliberais lhe chamam.
Porquê?
Muitos dos líderes políticos mundiais já não sentem necessidade de prestar tributo, mesmo que de modo instrumental, aos desígnios dos direitos humanos, do estado de direito, e do livre mercado como acontecia no passado. Isto não é uma forma de capitalismo menos agressiva do que a lhe antecedeu mas é diferente do neoliberalismo que descrevo no meu livro, que é caracterizado por um compromisso doutrinário com instituições supranacionais, comércio livre, livre investimento, e a ausência de vontade de retoricamente romper a divisão entre o mundo da propriedade, ou dominium, e o mundo dos Estados, ou imperium.
Hoje, o mundo do comércio internacional e, num grau menor, da finança, está a ser “repolitizado” (‘repotilizar‘, algo que faz uma nova política) de forma estridente. Para surpresa de alguns, a mais eficiente crítica ao globalismo neoliberal não veio da esquerda mas da direita. Teremos de aguardar para ver no que a atual onda de mobilização capitalista, com o seu crescente ênfase na soberania nacional, se transforma. É certamente muito cedo para dar o multilateralismo como morto ou assumir que algo como uma “desglobalização” é uma realidade. Como o século XIX – frequentemente catalogado como a “primeira era de globalização” – nos mostrou, um volume de comércio internacional elevado e crescente pode facilmente coexistir com tarifas crescentes. Usar tarifas deve ser visto como uma táctica da globalização mais do que a sua negação.
Um argumento fundamental do livro é o de que as instituições internacionais foram seminais na edificação de uma nova ordem global. Estas instituições podem ser transformadas por dentro?
Durante décadas, líderes norte-americanos atacaram essas instituições quando elas não serviam os seus propósitos e elogiavam-nas quando o faziam. Há quase uma natureza cíclica neste padrão de denúncia e reabilitação.
A verdadeira questão é se um programa progressista ou de esquerda pode ser incluído na próxima vaga de reabilitação. Vemos algumas pessoas fazerem reivindicações aparentemente idealistas para que os direitos laborais ou a proteção ambiental sejam protegidos a um nível supranacional. Seguramente é difícil imaginar isto no presente mas a verdade é que instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reivindicam direitos laborais globalmente, existem desde há um século, e houve projetos inspiradores de consciencialização ambiental e de mudança comportamental, desde a década de 1970 até ao final da década de 1980. Estes projetos representam futuros que não se realizaram e aos quais devemos sempre regressar.
Enquanto há vários partidos que congregam apoios, na Europa e alhures, opondo-se à migração e reclamando fronteiras fechadas, houve também muitas pessoas que se voluntariaram para ajudar refugiados em 2015 e depois e que acreditam sinceramente na causa das fronteiras abertas. Os últimos estão apenas à espera do seu veículo político.
Nós, historiadores, somos personagens contraditórias. Por um lado, tendemos a ser bastante pessimistas acerca do destino do mundo e frequentemente diagnosticamos um declínio generalizado, mas, por outro, sabemos através do estudo do passado que resultados imprevistos são quase a norma e que o futuro raramente pode ser previsto com segurança. Por isso tendemos a mantemo-nos como optimistas melancólicos.
Na sua investigação sobre a história do que chama “Archipelago Capitalism”, Vanessa Ogle aborda a história dos vários espaços extraterritoriais, não regulados e regimes de economias offshore. Como é que se encaixa na sua história da evolução da ordem econômica internacional?
Devemos lembrar-nos que o núcleo do projeto neoliberal é o que eles denominaram de federalismo competitivo. Como refiro ao longo do livro, o direito verdadeiramente importante é o direito de partir, não o direito de ficar. Se o capital conseguir preservar direitos de saída, então isso significa que uma estrutura legal forte que proteja esses direitos do capital pode abrir espaço para uma competição evolucionária, como alguém como Hayek pensaria nela. A mesma coisa que os críticos apelidariam de “race to the bottom” seria visto como complexidade adaptativa evolucionária pelos seus apologistas. Assim, a proliferação de zonas de escape em paraísos fiscais e Zonas Econômicas Especiais, e zonas francas de todos os tipos podem parecer ser esforços para sabotar uma ordem econômica legal internacional mas, dependendo de como cada um entende o desígnio máximo dessa ordem legal, os primeiros podem trabalhar com ela e não contra ela.
No que toca à relação entre globalização e liberalismo, nas suas múltiplas formas, incluindo a “neo”: devem ser vistos como dois processos inseparáveis, como frequentemente são?
Não creio que globalização e liberalismo (neo ou outro) sejam processos inseparáveis. Acho perfeitamente imagináveis modelos do que poderíamos chamar globalização iliberal ou não liberal. Poderiam assumir múltiplas formas. Uma seria uma sociedade global não democrática de direito privado como é imagina por alguns anarco-capitalistas. Implicaria a eliminação do governo representativo e a resolução de todas as disputas através de arbitragem por uma terceira parte.
O modelo de globalização promovido pela China representa outra possibilidade, classificada como “capitalismo de Estado” por alguns acadêmicos. Aqui a tônica é colocada na ligação estreita entre estado e interesses privados sem qualquer possibilidade de processos de tomada de decisão colectiva para além de plebiscitos pro forma.
O sistema chinês é claramente compatível com o comércio globalizado. Na minha opinião, eliminar a democracia, como aconteceria nos modelos libertário radical e de capitalismo de estado radical, seria romper com o liberalismo. O liberalismo pode por vezes abordar a democracia como um problema mas nunca procura a sua abolição completa. A democracia, no entanto, não é necessária para a globalização.
Houve caminhos não percorridos e soluções que não vingaram durante o lento mas gradual processo de institucionalização do neoliberalismo. Pode referir alguns destes momentos e porque falharam?
Um exemplo que é hoje particularmente relevante é o dos direitos de propriedade intelectual. Alguns dos primeiros neoliberais como Fritz Machlup, Hayek e Michael Polayni opunham-se aos direitos de autor e às patentes, vendo-os como monopólios de um tipo pernicioso. O conhecimento, uma vez criado, pode ser reproduzido sem gerar escassez. Reclamar posse exclusiva era produzir ineficiência. Nesta interpretação, alguns dos primeiros neoliberais estavam, na verdade, em sintonia com os líderes de países do Sul Global que, de forma semelhante, acreditaram que o conhecimento, especialmente na forma de fórmulas farmacêuticas, investigação científica, material impresso e, mais tarde, software, deviam circular livremente.
Hoje, a proteção global dos direitos de propriedade intelectual é um dos assuntos mais debatidos na economia global. Está no centro, por exemplo, da atual disputa entre os EUA e a China. Todavia não havia qualquer direito econômico internacional vinculativo sobre direitos de propriedade intelectual até à criação da OMC em 1995. Parte desta mudança foi o exercício puro do poder “corporativo” das indústrias farmacêuticas, de vestuário e de “Entertainment” norte-americanas, mas parte dele foi também o resultado a mudança dos neoliberais face às patentes, especialmente em torno da Escola de Chicago.
Houve recentemente uma conferência na British Academy, em que esteve presente, para debater Neoliberalismos Globais. Quais os principais aspectos a reter?
Um dos resultados mais interessantes foi um ainda maior questionamento daquilo que é dado por adquirido como sendo o modelo de difusão do neoliberalismo. Normalmente, pensamos no liberalismo como que a espalhar-se pela Europa de Leste e pela União Soviética como uma onda depois da queda do muro de Berlim. Investigadores como Johanna Bockman e Tobias Rupprecht demonstraram como esta ideia é enganadora. Na verdade, havia economistas e reformadores dentro do bloco soviético que, muito antes de 1989, discutiam Hayek, Buchanan e outros. Eles não estavam interessados na harmonia entre democracia e capitalismo, que se tornaria o credo dos neoconservadores americanos como Francis Fukuyama depois de 1989, mas sim na questão de como se poderiam obter os benefícios do capitalismo ao mesmo tempo que se suprimia o potencial disruptivo da democracia. Como pôr os mercados a funcionar sem eleições multipartidárias?
Neste sentido, a interação do bloco soviético com o neoliberalismo estava a empurrá-lo para o modelo da China e não para o dos EUA. O que se nota quando se olha para a recepção do neoliberalismo globalmente é que frequentemente o conceito-chave em consideração não é o capitalismo mas sim a democracia. Quanto pode a democracia ser suprimida sem destruir o milagre dos mercados? Este devia ser visto como o principal desafio intelectual do neoliberalismo, especialmente no século XXI.
Com o realizador Ryan S. Jeffery, fez uma pequena metragem sobre ideias sobre a economia mundial no século XX, “The Walls of the WTO”. Pode contar-nos a história dos edifícios do William Rappard Center nas margens do Lago de Genebra? E o que vos motivou a fazer este filme?
The Walls of the WTO foi uma colaboração com o meu querido amigo Ryan Jeffery. Permitiu-me visualizar um dos pilares do meu livro, Globalists. No livro eu sublinho a ironia extraordinária decorrente do facto de que a sede da Organização Mundial do Comércio (OMC) ter sido inicialmente construída para alojar uma organização bem distinta, a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nas seis décadas em que serviu como sede da OIT, as paredes do edifício estavam cheias de obras de arte oferecidas por sindicatos e outras organizações de trabalhadores de todo o mundo.


Existiam murais de trabalho, mas eram frequentemente de um tipo bastante interessante. Não se resumiam à indústria pesada mas incluíam também serviços. Existiam murais que mostravam mulheres telefonistas, actrizes, professoras e engenheiras informáticas ao lado dos costumeiros ferreiros e agricultores. Quando o antecessor da OMC, o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), tomou conta do edifício nos anos 70, estas obras foram ou cobertas ou desmanteladas e guardadas. Eram vistas como demasiado socialistas para a primeira organização do comércio internacional.O facto foi esquecido até ao início dos anos 2000, quando a OMC restaurou muitos dos murais, regressando à sua glória original, no meio de uma tentativa de reforma da imagem depois do desastre dos protestos de Seattle. Agora estamos perante uma comovente ironia na qual imagens comemorando uma organização criada com base em princípios de justiça social, direitos dos trabalhadores e a dignidade do trabalho adornam as paredes de um edifício cujo principal objectivo é o de proteger a livre circulação de bens através de fronteiras, independentemente do seu efeito nos trabalhadores.As pinturas servem como álibi estético, oferecendo uma patine de história a um projeto que eles não têm nenhum direito de representar. Este é exatamente o tipo de tensão que é difícil que o globalismo neoliberal suporte a longo prazo. Em 2018, a ordem mundial neoliberal está a ser perseguida por fantasmas que pensava estarem mortos há muito. Não sabemos ainda que tipo de futuro esta tensão criará.Originalmente publicado em 2 de setembro de 2018
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